No embalo da “sofrência”, tem feito sucesso a música “10%”, cantada por Maiara e Maraisa, cujos versos, para além do sofrimento amoroso derramado nas mesas dos bares pelas desiludidas, lamentam a cobrança dos 10% acrescidos ao valor da conta pelo estabelecimento. É a famosa gorjeta, expressamente prevista em nosso ordenamento jurídico (art. 457 da Consolidação das Leis do Trabalho) como parcela integrante da remuneração do empregado, embora seja remunerada diretamente por clientes de estabelecimentos como bares, restaurantes, casas noturnas, pousadas etc.
Ocorre, contudo, que o pagamento da gorjeta pelo consumidor não é obrigatório, isto é, é facultativo; o consumidor paga se quiser e achar conveniente, muito embora esse tipo de cobrança seja verdadeiramente imposta ao consumidor em muitas situações, fazendo com que se sinta verdadeiramente constrangido pelos estabelecimentos a efetuar o pagamento dessa importância.
Há estabelecimentos mais ousados e inescrupulosos que chegam a redigir no rodapé das "notinhas" que a cobrança possui amparo legal, alegando que Convenções Coletivas de Trabalho, firmadas entre sindicatos de patrões e empregados, preveem a exigibilidade da gorjeta.
Todavia, cumpre-nos informar a Maiara e Maraisa que esse argumento não prospera. Constranger o consumidor a pagar os 10% é inconstitucional e ilegal.
Em primeiro lugar, esclareça-se que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". Isto está previsto no artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal de 1988. Tal previsão integra o rol de direitos fundamentais consagrados pelo legislador constituinte, e decorre do princípio da legalidade. Nesse contexto, é preciso esclarecer que as Convenções Coletivas de Trabalho, embora sejam fontes normativas do Direito do Trabalho, não são lei, mas sim, como o próprio nome diz, convenções - instrumentos de negociação de direitos e deveres estabelecido entre empregador e empregado -, e por isso não produzem efeitos em relação a terceiros totalmente estranhos à relação de trabalho. Ou seja, Convenções Coletivas de Trabalho não incidem entre consumidor e fornecedor, pois esses sujeitos protagonizam uma relação de consumo.
O que ocorre, então, é que o fornecedor, aproveitando-se da ignorância do consumidor em relação a esse detalhe técnico/jurídico, acaba ludibriando o cliente no momento da apresentação da conta, fazendo-o crer que a cobrança é legal.
Em segundo lugar, ao revés, impor o pagamento de gorjeta ao consumidor configura prática abusiva – e, portanto, ilegal - conforme previsões contidas no artigo 39, incisos IV e V, do Código de Defesa do Consumidor, assim redigidos:
Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:(...)IV - prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços;V - exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva.
Perceba-se que a redação do caput do artigo informa que as práticas abusivas enumeradas nos seus incisos são meramente exemplificativas (numerus apertus), em razão da advertência constante na parte final de sua redação: “dentre outras práticas abusivas". Isso significa que, a depender do caso concreto, eventuais práticas não expressamente previstas no Código de Defesa do Consumidor poderão ser caracterizadas como abusivas.
Então, caríssimas Maiara e Maraisa, do ponto de vista financeiro, podem afogar as mágoas mais tranquilas, pois a Constituição e o Código de Defesa do Consumidor garantem que o pagamento da gorjeta não é obrigatório.
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